Beleza e sucesso podem ser ingredientes a uma grande maldição, que há de cobrar um preço alto. Em essência, é do que trata “A Substância”, também espécie de tratado sobre a imagem e estrelismo de Demi Moore, uma das atrizes mais celebradas nos anos 1990.
Moore viu a carreira se deteriorar após a virada do século e, ainda que nunca tenha saído de cena, jamais repetiu o fenômeno de trabalhos daquela época.
Aos moldes de “Crepúsculo dos Deuses”, clássico de Billy Wilder de 1950 no qual Gloria Swanson lidava com a própria decadência artística, este segundo longa-metragem da francesa Coralie Fargeat parte do imaginário de figuras como Demi Moore para refletir sobre a pressão social e econômica dos mitos de uma suposta perfeição feminina a ser atingida.
Pela história da intérprete dispensada pela idade e que se submete a enigmático procedimento para trazer à tona a proclamada “melhor versão de si mesma”, Fargeat levou prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, em maio.
À primeira vista, o enredo de “A Substância” chama atenção na postura sarcástica e provocativa à indústria cultural e aos excessos mortais em torno da aparência. Mas a investigação de Fargeat vai além.
Assim como no trabalho anterior, “Vingança”, de 2017, a cineasta se apropria dos códigos de certos gêneros e os amplifica até limites inesperados, sem qualquer pudor para a grosseria, o cinismo ou um perturbador senso de humor.
Mais que fazer discurso ou defender pontos de vista sociologicamente adequados, Fargeat extrapola ideias e leva juntos, personagens e espectadores, ao sentimento de quase exaustão.
Em “A Substância”, a premissa de ficção científica se encontra com o horror corporal e com o bom e velho “filme de monstro”, num caldeirão de referências que demonstra o prazer criativo da diretora.
Espécie de adaptação informal de “O Retrato de Dorian Gray”, romance de Oscar Wilde, o longa adota um estranhamento narrativo e alegórico, numa sequência frenética de acontecimentos cujo propósito parece ser expor nossa percepção a ir sempre para mais do que viera antes.
Se a certa altura “A Substância” se assemelha a um grande pesadelo, na verdade ele é assim desde os primeiros minutos, naquela cidade impessoal com personagens, especialmente os homens, em chave grotesca e antinaturalista.
Só Elisabeth, papel de Demi Moore, demonstra consciência do teatro de absurdos que ela testemunha e do qual é a maior vítima. A ironia é que sua contraparte, vivida por Margaret Qualley, entra em cena na mesma pantomima irracional de todos ao redor.
Quanto mais ela se depara com as exigências inevitáveis da fama, mais violentamente reage, num processo de autoabuso ilustrado pela ideia de vício por glamour.
A fábula toma contornos explícitos e aproxima as imagens do filme ao cinema de David Cronenberg, e seus sentidos filosóficos à literatura de Clive Barker. Na relação entre os desejos mundanos e as retorções da carne como a mais cruel consequência disso, “A Substância” avança no que outro filme de diretora francesa, “Titane”, de Julia Ducournau, apresentou em 2021.
O universo pelo qual Fargeat transita é bastante conhecido a qualquer pessoa familiarizada com Hollywood, então há um pacto mais nítido e algumas ousadias de choque desconcertantes no desmonte das ilusões.
Mas, em meio a tanta coisa e à catarse do ato final, “A Substância” passa a ideia de uma explosão com poucas possibilidades de caminho para além do impacto imediato.
O fascínio de Coralie Fargeat pela monstruosidade inerente à plenitude é evidente, porém nem sempre isso se transmuta tão além dos efeitos instantâneos. Igual à fórmula verde estopim da trama, a proporção tomada por “A Substância” indica ambições maiores, não exatamente realizadas.