Talvez o jeito mais fácil de falar sobre os livros “Bento Vento Tempo”, “Zaime” e “Memória de Elefante” seja a partir da ciência e dos números. Essas três obras apresentam para crianças e jovens um tema cada vez mais comum no mundo, mas ainda raro na arte para essa faixa etária por estar ligado a outra fase da vida —os casos de Alzheimer, demência e doenças que afetam a memória.
O crescimento aparece num relatório de 2021 da OMS, a Organização Mundial da Saúde. Segundo ele, cerca de 55 milhões de pessoas sofrem atualmente com algum tipo de demência, enquanto esse número deve quase triplicar até 2050.
Se crianças e adolescentes irão conviver cada vez mais com avós, pais, tios, parentes e conhecidos com Alzheimer e doenças do tipo, são muito bem-vindos lançamentos infantojuvenis que tocam de alguma maneira nesse assunto. Mas as lentes da ciência e da estatística não são suficientes para dar conta inteiramente de “Bento Vento Tempo”, “Zaime” ou “Memória de Elefante”.
Os três se destacam porque trabalham essa questão no campo da linguagem e da ficção. Transformam a erosão da memória em literatura. E encontram caminhos distintos na hora de fazer isso.
O mais recente é “Bento Vento Tempo”, que acaba de sair pela Companhia das Letrinhas, na estreia de Stênio Gardel na escrita para a infância. O cearense virou notícia no ano passado após seu romance “A Palavra que Resta” ter se tornado o primeiro livro brasileiro a vencer o National Book Award, um dos principais troféus literários dos Estados Unidos. O título, vertido ao inglês por Bruna Dantas Lobato, foi premiado na categoria para obras traduzidas.
Em sua chegada ao universo infantil, Gardel escolhe a poesia para contar a história do próprio avô, que começa a perder a memória. Os versos metrificados evocam a tradição dos folhetos de cordel e apresentam a figura de Cacá, um sertanejo trabalhador que “foi calando devagar/ sem querer se retraía/ foi murchando seu vigor/ sem querer enfraquecia”.
Ao ver que o avô se esquecia pouco a pouco de nomes, pessoas e coisas, mas seguia apegado a uma antiga fotografia, o menino-narrador tem uma ideia. Resolve levá-lo de bicicleta para a feira da cidade, onde ambos conhecem um ateliê de fotopinturas, técnica tradicional e popular que intervém em fotos e retoca imagens com tintas e pinceladas.
É a partir daí que a relação dos dois e a própria vida do avô ganham novas tintas, camadas e retoques. A ponte entre arte e memória é acompanhada pelas ilustrações, feitas pelo premiado Nelson Cruz, que parece colorir fotografias antigas. Mas essa conexão aparece ainda em algo mais profundo —na própria poesia.
É bom lembrar que os poemas populares costumam ter formas fixas e rimas determinadas por causa da forte ligação com a literatura oral. A estrutura rígida ajudava poetas, cantadores e o próprio público a se lembrar dos versos, que não eram escritos, mas cantados, contados, declamados e espalhados no boca a boca. A forma predeterminada facilitava a memorização. Justamente a memorização que falta a Cacá.
Já em “Zaime”, a escritora Sônia Barros também opta pela autoficção e transforma em literatura a sua relação com a mãe, diagnosticada com demência. Só que faz isso com outro tipo de linguagem.
Poética sem usar a poesia nem o verso, a história é apresentada como se fosse uma peça de teatro ou um roteiro de filme, com capítulos formados exclusivamente pelas falas de mãe e filha. A obra, lançada pela editora Abacatte e ilustrada por Raquel Matsushita, tem mais de 70 páginas de puro diálogo, nos quais o leitor mergulha sem boias num caudaloso rio de encontros e desencontros.
A desorientação logo se torna um jogo de espelhos. Os papéis se invertem. A mãe se torna filha da filha. A filha adota maternalmente a própria mãe. O tempo também se embaralha, ora com conversas no presente, ora com papos do passado.
Entre saltos temporais, repetições labirínticas e certezas nubladas, Barros faz algo poderoso. Ao ler “Zaime”, nós nos sentimos ao mesmo tempo filha e mãe. Ficamos ansiosos e perdidos, compreensivos e carentes, preocupados e agradecidos. Somos adultos e crianças. Tudo junto. Misturado. Embaralhado.
Até que percebemos que o diálogo não é exatamente entre as duas. Ou não só. Há sempre um terceiro elemento. Um personagem oculto —o tal Zaime, como a mãe chama o Alzheimer. Ele está lá, à espreita, palpável, participando das conversas.
Por fim, “Memória de Elefante” adiciona um elemento fundamental a toda essa conversa —a solidão.
Com texto de Paula de Santis e ilustrações da iraniana Fereshteh Najafi, o título publicado pela ÔZé já coloca sobre a mesa uma contradição logo no título. Ter uma memória de elefante significa esbanjar uma boa memória, que não falha, jamais se esquece. É o inverso da demência apresentada no livro.
Mas é justamente essa faísca que sustenta a narrativa. Nela, a narradora também fala sobre a mãe, uma mulher que nasceu sozinha, numa família pequena, como nos grupos de elefantes. Por isso, após se casar, ela decide fazer o inverso e construir uma família imensa, cheia de filhos e netos reunidos numa casa movimentada e ruidosa.
Mas isso faz tempo. Apesar da família grande, a casa ficou vazia e silenciosa. A memória tampouco é a mesma, a ponto de a mulher perguntar o nome da própria filha. Músicas tocam só dentro de sua cabeça. Conversas se desenrolam com bichos imaginários. Um dia, ela espalha doce de leite sobre as pernas. E gargalha. E chora. E grita. E gargalha de novo. Sempre sozinha —de fato ou dentro de si mesma.
Texto e imagens criam juntos metáforas colossais para falar do isolamento dessa mãe e do seu descolamento da realidade e do presente, borrando as fronteiras entre o humano e o animal, a cidade e a floresta. Não à toa as ilustrações de Najafi acabaram selecionadas pela Feira do Livro Infantil de Bolonha deste ano e foram expostas durante o evento, que ocorreu na Itália em abril.
No fim, cada uma dessas leituras parece mostrar de jeitos diferentes que a falta de memória surgida por causa do Alzheimer e da demência não é sinônimo de memória nenhuma. É outra memória, que se torna matéria-prima literária nos três livros. Pode ser memória de elefante, poesia metrificada ou diálogo labiríntico. Só não pode ser um elefante na sala.
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