A comédia “O Jovem Frankenstein“, de Mel Brooks, inaugura, com uma sessão a céu aberto nesta quinta-feira, às 19h, o período mais animado do ano na Cinemateca Brasileira. É quando acontece a terceira edição da mostra retrospectiva “50 Anos Depois”, agora dedicada, naturalmente, a 1974, com curadoria do cineasta Paulo Sacramento.
Uma revisão de 1974 não poderia deixar de lembrar que, naquele período, a Guerra no Vietnã rolava a toda e a ditadura no Brasil também. O que estava na moda, do que mais se falava, era do jovem cinema alemão. E, com efeito, lá estarão os seus três principais representantes em momentos marcantes: Rainer Werner Fassbinder, com “O Medo Consome a Alma”; Werner Herzog, com “O Enigma de Kaspar Hauser“; e Wim Wenders, com “Alice nas Cidades”.
Esse foi um tempo de renovação de ideias, e não apenas na Alemanha. Hollywood via então uma nova geração de autores se afirmar rapidamente. Para não deixar nenhuma dúvida a respeito, a mostra traz o incontornável “O Poderoso Chefão 2“, de Francis Ford Coppola.
Talvez haja mais interesse de ver novamente (ou pela primeira vez), “Alice Não Mora Mais Aqui”. Era o primeiro filme de produção maior de Martin Scorsese e deu a Ellen Burstyn o Oscar de melhor atriz daquele ano.
O grande precursor dessa geração, John Cassavetes, apareceu naquele ano com o que foi provavelmente seu filme de maior sucesso: “Uma Mulher sob Influência“, que de quebra rendeu ao mais independente dos cineastas americanos uma indicação ao Oscar. E também a Gena Rowlands, sua parceira e atriz principal do filme, morta em agosto.
“Chinatown” foi também outro anúncio de que uma nova geração começava a mandar em Hollywood. Robert Towne ficou com o prêmio de melhor roteiro daquele ano, embora se diga que quem resolveu os maiores problemas do texto e praticamente o reescreveu junto com o roteirista foi o diretor Roman Polanski, que veio da Europa para dirigi-lo. De quebra, “Chinatown” ganhou também uma indicação ao Oscar de melhor filme, assim como Jack Nicholson, melhor ator. É um filme notável.
Bem longe do Oscar ficou “Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia”, de Sam Peckinpah. O título já explica a exclusão. O resto explicaria muito mais: não se dá um prêmio cheio de smokings e gravatas borboleta a um filme em que o ator passa quase o tempo todo com uma cabeça num saco de estopa. O filme é brilhante, de todo modo.
A seleção, sempre se equilibrando entre gêneros e tendências, traz ainda o terror explícito, e hoje clássico, de “O Massacre da Serra Elétrica“, de Tobe Hooper, e o mais reservado de “Sangue para Drácula”. Neste último, de Paul Morrissey (produção de Andy Warhol), Drácula passa mal no mundo moderno, pois precisa do sangue de virgens para se alimentar. E não encontra mais nenhuma virgem em seu trajeto. Sem esquecer de “Foxy Brown”, de Jack Hill, que aqui representa a era da “blackexploitation”, vale a pena passar à Europa.
A Itália entra com destaques fortes —”Violência e Paixão”, de Luchino Visconti, de novo um filme sobre mudança de tempos e costumes, e “Perfume de Mulher”, a versão original, de Dino Risi, com Vittorio Gassman. É o filme que inspirou o remake hollywoodiano dos anos 1990, que deu o Oscar a Al Pacino, mas, francamente, é bem mais duro, realista e, para resumir, muito melhor.
Da França vem “O Fantasma da Liberdade”, penúltimo filme do espanhol Luis Buñuel, onde também se produziu o “Sweet Movie”, do iugoslavo Dusan Makavejev (hoje, enfim, ele seria um sérvio). Da Suécia, há “Cenas de um Casamento”, de Ingmar Bergman.
Convém não esquecer de alguns marginais —do Irã vem uma raridade da primeira (e desconhecida) fase de Abbas Kiarostami, não menos raro é “O Viajante”; da Bolívia há “O Inimigo Principal”, o principal filme de seu Jorge Sanjines.
Por fim, fechando o setor internacional, vale notar “Emmanuelle”, de Jean-Louis Richard, que não interessa pelo filme (aliás um sucesso internacional de anos a fio), mas pela beleza de Sylvia Kristel, atriz bem injustiçada justamente por conta desse sucesso, que a condenou a ser atriz erótica pelo resto da vida.
Já a seleção brasileira deste ano abandona a predominância do cinema novo e a troca pela dos cineastas ditos marginais. Ali estão Ozualdo Candeias —”Caçada Sangrenta”, aliás, filme de encomenda—, “Exorcismo Negro”, de José Mojica Marins, “O Lobisomem”, de Elyseu Visconti, “Triste Trópico”, de Arthur Omar, “O Rei do Baralho”, de Julio Bressane. Os malditos ressurgem em massa.
Foi uma época de censura feroz, o que de certa maneira tornou menos vistosa a produção do cinema novo, aqui representada por “A Guerra Conjugal”, trabalho um tanto desigual de Joaquim Pedro de Andrade —mas que vale pelo esquete com Joffre Soares.
Mas o filme mais representativo da produção brasileira de 1974 é “Iracema, uma Transa Amazônica”, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, uma poderosa mistura de ficcional —provocado em boa medida por Paulo Cesar Pereio, o caminhoneiro Tião Brasil Grande— com documental. O longa revisita a construção da rodovia Transamazônica, grande e devastador projeto do governo militar, ao mesmo tempo em que mostra as condições de vida das pessoas da região e a cafajestice dos não amazônicos. Como muitos outros filmes daquele período, parou na censura.
Importante, por fim, deter-se em “Carro de Bois” de 1974, grande destaque entre os curta-metragens e última obra-prima de Humberto Mauro. O carro de bois foi, ao longo da carreira de Mauro, uma espécie de metonímia do Brasil, que não existiria ou ao menos seria outra coisa sem esse veículo. Esse foi também seu último filme.
O “seu” Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) havia virado Instituto Nacional do Cinema, uma nova geração ocupava os espaços. Mauro perdera poder e influência, mas ainda pôde fazer esse canto de cisne magnífico, onde o carro de bois torna-se metáfora do velho cineasta, deixado de lado e desmontado para dar lugar a novas tecnologias.
O filme é em cores e ninguém dirá que é impessoal —é a última lição de cinema do grande mestre da primeira geração de realizadores brasileiros.