Vinte e cinco anos depois da estreia, “Família Soprano” ainda provoca discussões. A criação de David Chase é sempre citada num tipo de debate acalorado, que busca determinar qual é a melhor série já realizada em todos os tempos.
“Família Soprano” também é muito lembrada, em tom nostálgico, quando se lamenta que a televisão abandonou a ambição que teve num passado recente —uma era de ouro que gerou outros produtos de altíssima qualidade, como “The Wire”, “Mad Men” e “Breaking Bad”.
O recém-lançado “Um dos Nossos: David Chase e a Família Soprano”, um documentário em duas partes, ajuda a entender por que o programa entrou para a história da televisão. Dirigida por Alex Gibney, um respeitado e premiado documentarista, a obra está longe de ser uma celebração chapa-branca da série, muito pelo contrário.
É um mergulho vertical, que traz à tona problemas, complicações, sofrimentos e dores relacionados à realização da série. Mas, sofisticado e cuidadoso, resulta em puro deleite para os fãs.
Alerta de spoiler —se ainda planeja se aventurar pela série, com seus 86 episódios no ar no Max, este texto pode estragar alguns prazeres. E, sendo transparente, ponho “Família Soprano” no topo de qualquer ranking de melhores séries.
Gibney abre o documentário com uma escolha de gosto duvidoso, a criação de um ambiente que imita o consultório da doutora Melfi, a terapeuta que ao longo de seis temporadas fará de Tony Soprano não um homem melhor, mas um chefe mafioso melhor.
Mas o método de Gibney funciona, tanto que Chase reclama na segunda sessão de gravação. “Eu realmente me arrependo do excesso de verborragia dessa manhã”, diz. “Topei participar do documentário, mas não me dei conta de que seria sobre mim.”
As primeiras sessões de entrevista dão um panorama da infância e da juventude de Chase, a rejeição em boas universidades, a aproximação com o cinema —tentando de forma tosca imitar Jean-Luc Godard— e os primeiros trabalhos na televisão. Logo, porém, a conversa entra em “Família Soprano”. Entre outras revelações, o diretor vai deixar bem claro qual foi a inspiração para Livia Soprano, a terrível mãe de Tony.
A personagem, que conspira para a morte do filho, nasceu das lembranças menos tenras de infância do diretor. Não que a mãe de Chase tenha planejado matar o filho, mas era autoritária e maluca, segundo ele. “Ela tinha medo e raiva de todo mundo”, diz.
Chase pensou num filme, com Robert De Niro e Anne Bancroft, sobre um mafioso que busca ajuda terapêutica, mas acabou desenvolvendo o piloto de uma série. O projeto foi oferecido, e rejeitado, por todas as quatro redes de TV americanas. A HBO, que no final dos anos 1990 já dava sinais de abertura a ousadias, aprovou uma primeira temporada.
Ouvindo os depoimentos de Chris Albrecht e Carolyn Strauss, então executivos do canal, entendemos que o segredo do sucesso foi a liberdade criativa oferecida a Chase. “Não estou disposto a aceitar texto de TV. Somos livres aqui. Vamos fundo”, diz Chase aos roteiristas da série. Exigente, ele cria um ambiente de grande criatividade, mas também de pressões exageradas, como transparece em alguns depoimentos.
O quinto episódio é um divisor de águas. Tony leva a filha Meadow para conhecer algumas universidades perto de Nova Jersey, onde vive a família. No meio do caminho, ele encontra um mafioso que traiu seu grupo e o assassina com as mãos. É uma cena brutal. Albrecht, num primeiro momento, pediu a supressão da cena, mas depois entendeu que o protagonista de “Família Soprano” era um criminoso, um anti-herói.
A segunda parte do documentário é ainda mais espetacular. Lorraine Bracco, a doutora Melfi, Edie Falco, a Carmela, e Michael Imperioli, o sobrinho Chris, que depois também passa a ser roteirista da série, contam detalhes saborosos dos bastidores. Os roteiristas Robin Green e Terence Winter descrevem como a genialidade de Chase muitas vezes se confundiu com loucura.
Mas, sobretudo, é a história de James Gandolfini que domina o filme. Ator sem trabalhos de impacto até então, ele abraça o papel de Tony Soprano de forma visceral.
O documentário faz um retrato delicado, mas perturbador, do protagonista da série. De alguma forma, ele deixa que a carga emocional que o personagem carregava o contamine. Os excessos de Gandolfini com bebidas e drogas atrapalham as gravações e expõem a fragilidade do ator. A direção da HBO chega a propor que ele passe por uma clínica de reabilitação, mas ele recusa.
Gandolfini morreu seis anos depois do fim da série, em 2013, após sofrer um ataque cardíaco. Tinha 51 anos. Ao fazer o elogio fúnebre do ator, David Chase chora. Todo mundo chora. O final aberto de “Família Soprano” não é tão aberto assim, fica evidente.
É uma pena que “Um dos Nossos: David Chase e a Família Soprano” tenha apenas dois episódios. Outro dia li que a série documental sobre uma ex-modelo e apresentadora brasileira tem oito episódios. Mundo injusto.