Edi Rock recusou um convite para se apresentar no Rock in Rio, que acontece até este domingo. “Não aguento, obrigado. É muito tumulto, van, hotel. Dá preguiça só de pensar. Quero cantar na quebrada. Semana que vem tem show em Osasco [em São Paulo] —na rua, na favela. Aí vou saltitante. Os interesses são outros, os valores são outros. Mas a molecada fica doida, tem o sonho de cantar lá.”
Um quarto do Racionais, ele fala dos MCs de trap, vertente mais pop do rap que dominou um dos sete dias do festival carioca. Rock até dialoga com as novas gerações e canta no trap, mas tem outra raiz, o rap liricamente mais complexo e socialmente consciente dos anos 1990. E hoje tem outros objetivos.
“A molecada aprendeu a usar a máquina em seu favor. Matuê no lançamento do disco “333” usou seu talento para fazer algo que poucos imaginavam. Quis chamar atenção e conseguiu. Eu não faria isso”, diz. “Já não quero chamar atenção. Vou na contramão, aposto na música. Vou no pé.”
Foi assim que ele idealizou seu novo trabalho, a última parte da trilogia “Origens”, um disco e filme gravados no dia em que completou 52 anos, no ano passsado, quando o hip-hop chegou a cinco décadas de existência. Fez de maneira elementar, só com DJs e MCs. “Não tem pirotecnia, telão nem cenário, nada mirabolante.”
O repertório abrange os dois volumes de “Origens”, de 2019 e 2020, e álbuns solo mais antigos, como “Contra Nós Ninguém Será”, de 2013. Entre os convidados estão Dexter, rapper que Rock ajudou a produzir quando ele estava na cadeia, além de Mano Brown, Seu Jorge, MC Pedrinho e Alexandre Carlo.
Rock também é acompanhado por DJs, incluindo KL Jay, o primeiro dos Racionais que ele conheceu, quando era adolescente na zona norte de São Paulo. No curto documentário que acompanha o disco, o rapper vai até a escola onde estudou e se lembra do amigo que deu a ele seu nome de MC.
Nascido no bairro de Tucuruvi e criado na Vila Mazzei, Rock diz que a região é parte de seu corpo. “Canto para o mundo, represento o Brasil e a minha pele” diz. “Mas se não fosse a zona norte, talvez eu não tivesse conhecido o KL Jay, que já dançava [breaking], e entrado na música. Poderia ter trilhado outro caminho. Tinha uns 15 anos, estava aprendendo a ouvir música.”
A primeira revolução, ele diz, foi ouvir Jorge Ben Jor. Depois, o samba de Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho. Rock tocava repique de mão nas rodas e em grupos e frequentava a Acadêmicos do Tucuruvi.
“Era o fim da ditadura militar, o breaking estava chegando. Era tudo mágico e perigoso. O rap vinha como uma revolução mundial. Imagina na nossa cabeça, que não tinha acesso a essa informação. A gente pirou. Eu tive uma dúvida —ir para o rap ou ficar no samba.”
Como MC, ele ganhou o Brasil com o Racionais, que lançaram em 1997 a bíblia do rap brasileiro, o disco “Sobrevivendo no Inferno”. Retrato explícito da vida na periferia, o álbum é pesado e reflete uma São Paulo do Massacre do Carandiru, de 1992, e que quatro anos depois teria sua zona sul considerada pela Organização das Nações Unidas a região mais violenta do planeta, com mais de 116 assassinatos para cada 100 mil habitantes.
Hoje obra obrigatória no vestibular da Universidade de Campinas (Unicamp), o disco marcou uma era sombria para os Racionais. “Colocamos nossa própria vida ali. Mesmo sendo poesia e parecendo algo sangrento, a realidade é muito pior. Pode reparar que nunca mais tratamos [a violência] como fizemos no ‘Sobrevivendo’. A realidade que a gente se inspirou e viu para escrever aquilo é ruim. Você ver um parceiro morrer, ver a violência de frente, é muito ruim.”
Ele se lembra do show em que um corpo foi atirado no palco. “Imagine, você cantando e de repete jogam um corpo no seu pé. Sangrando ainda, um corpo quente. Isso não é legal. Tinha um peso nas palavras.”
O disco mais popular, e o mais influente em termos de estética do grupo, veio cinco anos depois. “Nada Como um Dia Após o Outro Dia” é resultado de um período de reflexão, mais ligado à vida. “Viemos mais gangue, mais quebrada e mais rua”, diz. “Voltamos para o bairro, para o que era popular. As gírias, as roupas, os carros, as motos. É também mais suingado, mais musical.”
Em “Origens 3: O Show”, as duas maiores composições de Rock se destacam —”Negro Drama”, com Mano Brown no Racionais, e “That’s My Way”, com Seu Jorge em carreira solo. A primeira, que ele compôs para o álbum de 2002, é um hino do rap e da população negra.
Rock na letra tenta elaborar o que se pensava pela cabeça de uma pessoa negra naquela época. “Era ‘o que o negro pensa, o que ele quer, o que faz, como sofre, por onde anda’. Fiz há 20 anos e serve para hoje. Essa música foi um norte, ensinou coisas para o Racionais e para mim mesmo.”
Já a parceria com Seu Jorge, diz, surgiu entre 2012 e 2013. “Pensava num futuro próspero, na família bem, na minha saúde mental, em misturar isso tudo em forma de poema”, diz. “Já tentei fazer ‘That’s My Way’ outras vezes, mas não consegui. A música é única, a mensagem é única.”
Transmitir uma mensagem na música, diz Rock, é sua missão ancestral. “Sou espiritualizado. Quase diariamente, recebo relatos de gente dizendo que nossa música salvou vidas. Gente que ouviu enfermo, no leito de morte, dentro da cadeia, que saiu das drogas, se formou ou voltou a estudar. Nossa música resgatou essas pessoas que estavam no fundo do poço, perdidas.”
Ele não critica o trap e o funk atuais pela abordagem mais hedonista. Diz que há muito rap de qualidade sendo feito, a maioria sem tanta visibilidade, e celebra que os jovens tenham espaço na música —e não no crime—, mesmo quando estão produzindo música “lixo”.
“Tem letristas brabos, descubro vários —fazendo música com jazz, sample de música brasileira. Mas o que está na mídia é a música da molecada, o que dá clique. Com 15 ou 20 anos, você sabe o quê? Porra nenhuma. Não sabe nem respeitar a mulher. Não é responsável pelo que diz. A linguagem deles vai ser o quê? Vida de jovem. Eles aprenderam muito de produção e cantam o que vivem. Isso eu acho lindo de ver.”
A trilogia “Origens” reflete toda sua vivência, desde a infância. Vai do sertanejo e brega que ouvia com o pai, que veio do interior da Bahia, ao samba que conheceu com a mãe, além do reggae e até do rock, que aprendeu a gostar depois.
Tudo dentro de seu estilo. “Poderia fazer um samba, mas seria eu na casa dele, e não ele na minha casa. Fiz com que o samba viesse para o rap. Sempre boto um bumbo e uma caixa forte, e um looping.”
Foi assim com o sertanejo. Rock admirava Marília Mendonça, morta em 2021, que sem aviso prévio foi a um de seus shows. “Apareceu dizendo que era fã. Curtiu, bebeu, fumou e trocamos uma ideia. Depois, fui a um show dela, e estreitamos uma amizade. Essa parceria ia acontecer, mas Deus não permitiu.“
O rapper acabou gravando “Uq Cê Vai Fazer?” com outra cantora do gênero, Lauana Prado, hoje uma das mais populares do país. Ela foge do estereótipo sertanejo no comportamento —é bissexual e se posicionou contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. “Tem opinião própria”, diz o rapper. “Não segue o bonde, faz o bonde dela. Isso é admirável. Poucas pessoas têm essa coragem.”
Rock, por sua vez, não tem acompanhado tanto as eleições para prefeito de São Paulo. Diz que não conhece bem Pablo Marçal, do PRTB, candidato que vem cantando músicas dos Racionais na campanha, mas o considera um aproveitador.
“Todos que estão próximos a mim falam mal dele. Ele faz um circo midiático. A polêmica é a bandeira desses caras. Não conheço a história dele e tenho preguiça de conhecer. Mas não quero que ninguém de direita use minha música para fazer campanha. Se for da esquerda, até pode ser. Época de eleição é assim —ganha quem apela mais.”
Rock afirma ainda que é e sempre foi de esquerda, e deve votar em Guilherme Boulos, do PSOL. “Ainda estou pensando, mas acho que é Boulos, ele está forte”, diz. “Até por que, quem mais tem? Tabata [Amaral, do PSB]? Da esquerda, pelo menos, a gente é próximo, pode cobrar. A esquerda também sempre olha mais para cultura e educação. Direita é sempre só polícia e asfalto.”
Enquanto toca sua carreira solo, ele prepara um novo álbum com o Racionais, o primeiro desde “Cores e Valores”, de 2014, que deve sair no ano que vem. O disco, ele diz, vai ser “nostálgico, contemporâneo e futurista” e “vai ter um pouco de tudo”, o que inclui batidas de rap no estilo boombap, dos anos 1990, trap e também funk.
Rock despista sobre uma possível parceria com Anitta. “Tiraram a foto com ela no estúdio, mas não sei. É uma música do Ice Blue. É capaz que entre no disco. Não posso afirmar. Tem umas 40 ou 50 músicas. A gente não para. Só que nem todas são boas. Agora, estamos na fase da peneira e do roteiro. As faixas têm que conversar entre si. Até o fim do ano acredito que tenhamos algo na rua. Videoclipe já tem um monte.”
Hoje, Rock brinca que vive “foragido”. Mora entre Ubatuba, de onde falou por chamada de vídeo em uma longa caminhada no meio do mato à reportagem, e a capital. Corre dez quilômetros “dia sim, dia não”, malha, nada, surfa e rema. Mantém uma agenda de shows confortável para quem é um dos maiores nomes da história do rap nacional.
Diz que sua vida, a despeito da fama, é cheia de altos e baixos —”entre o sucesso e a lama”, como na letra de “Negro Drama”. “Ali eu falo de mim, mas falo de vários. Sou a prova real disso. É acidente de carro, acusação de fita negativa, perdas familiares, fui pai muito cedo.” Rock se refere a uma acusação de estupro que sofreu há dois anos, em caso que foi arquivado após o Ministério Público não encontrar elementos suficientes para propor uma ação penal contra ele, que hoje prefere não falar do assunto.
“Nossa vida é cheia de dificuldade, e sendo preto, é mais ainda, duas vezes mais difícil. O Racionais veio remando contra a maré, falando de protesto, de consciência e ninguém queria saber daquilo na época. A nossa história já é um drama.”