O jogo entre verdade e mentira é próprio do teatro e não há aí nenhuma novidade. Mas a proposta do autor e diretor franco-uruguaio Sergio Blanco, de embaralhar invenção e realidade, é de tal maneira particular —e tão característica da sua escrita— que lhe tornou figura reconhecida internacionalmente e certamente um dos maiores dramaturgos de língua espanhola em atividade.
Seu mais recente espetáculo, “Tierra” integrou a programação do festival Mirada, em Santos, e agora sobe a serra para fazer apresentações em São Paulo, no Sesc Vila Mariana. Na obra, que é sua quinta encenação a ser vista por aqui, o artista volta a afirmar sua crença na autoficção: um estilo em que fabula a partir da própria experiência sem nenhum compromisso com a veracidade dos fatos.
Nada que se assemelhe à atual corrente autobiográfica, tão em voga na literatura contemporânea. Uma produção muito mais próxima da de Paul Auster —com seus contornos policiais— do que da de Annie Ernaux.
Na peça, Blanco também retoma algumas de suas obsessões ou temas prediletos, se quisermos falar em termos mais brandos. Lá estão a morte (sempre com espaço para um assassinato violento), os limites éticos da arte (eles existem?) e a busca incessante pela beleza. A despeito dessas semelhanças com seus títulos anteriores, há uma significativa diferença em “Tierra”. O costumeiro cinismo de Blanco abranda-se para ceder espaço a uma inaudita ternura.
Após a morte de sua mãe, a professora de literatura Liliana Ayestarán, o autor tenta reconstituir sua figura a partir dos depoimentos de três de seus antigos alunos: Clara (Soledad Frugone) procura desde criança entender o que teria acontecido ao pai, um desaparecido político; Lucas (Tomás Piñeiro) é um adolescente que matou o irmão gêmeo e para quem a professora enviava livros na cadeia; e Celia (Andrea Davidovics) era uma servente da escola, alfabetizada tardiamente, que perdeu seu filho em um acidente de moto.
Vale aqui um parêntese: atriz veterana da Comédia Nacional de Montevidéu, Davidovics é um assombro em cena.
Sebastián Serantes interpreta o papel do diretor e explica já no prólogo toda a estrutura da encenação a que o público assistirá. Munido de duas câmeras e instalado no que seria a quadra de esportes de uma escola, ele entrevista os ex-alunos. Por mais três atos e um epílogo, todos os atores permanecerão constantemente no palco.
Eles se apresentam ao público com seus nomes verdadeiros e explicam quais personagens irão interpretar. A impressão é de que o encenador faz questão de mostrar seus materiais de trabalho, seu método. Um mágico que explica exatamente como realiza seus truques. O notável no caso de Sergio Blanco é que a mágica —mesmo desvendado o mecanismo do ilusionismo— acontece mesmo assim. E soa duplamente misterioso.
Em diversas passagens, um gosto de Grécia antiga vem à boca. Os passeios que Liliana fez pelas colinas de Troia, as menções a Ésquilo, a história da aluna que busca o corpo do ente querido para dar-lhe uma sepultura definitiva, tal qual uma Electra moderna. Poderia ser sisudo, mas não é.
A música funciona como contraponto interessante: Billie Eilish, Leonard Cohen, Julio Iglesias. O humor percorre as cenas de forma muito espontânea. Também filólogo clássico de formação, Blanco é um helenista pop, muito hábil no manejo dos instrumentos que tem à mão.
Ainda que exista um personagem com seu nome em cena, Sergio Blanco expõe-se menos nessa obra do que nas anteriores “A Ira de Narciso” ou “Cuando Passes sobre Mi Tumba”, por exemplo. Ou tematiza menos escancaradamente suas angústias e pulsões.
É curioso que um escritor tão cioso de pesos e contrapesos, a equilibrar-se sempre entre o riso e o drama, construa o retrato de sua mãe tão sem contradições. Mas aí nos damos conta de que Liliana não é mais uma pessoa, com rachaduras como cada um de nós.
Liliana agora é uma construção das palavras, um quadro a ser pintado, um jeito amoroso de olhá-la. É uma obra de arte tão harmônica, bela e ordenada como as da Grécia antiga.